sexta-feira, 4 de agosto de 2017

IMITAÇÃO DA VIDA






















IMITAÇÃO DA VIDA
Fábula e parábola.

Muitas vidas se encaixam na imagem de um velho barco abandonado na praia.

Quando era jovem, ágil e forte, enfrentava ondas iguais montanhas líquidas, escalando-as por um lado e descendo pelo outro, sua quilha abrindo-as se elas se tornassem impertinentes.

Se ele nos pudesse falar, contaria suas aventuras sempre como uma fiel montaria de seu dono que confiante nele mesmo, ele o barco azul e branco, tinha que o proteger de suas ousadias, suas incursões a alto mar abissal como se estivesse pilotando um grande barco de aço.
Não, diz o barco abandonado - Sou... Ou melhor, fui feito de madeira nobre e forte, mas apenas era de madeira. Os pescadores à garupa semeavam iscas, e eu percorria os imensos campos líquidos a levá-los aos melhores locais de colheita. Os frutos eram feitos de prata reluzente ao sol que mal despontava. Enquanto o sol se espreguiçava para enfrentar mais um dia de trabalho quente e iluminado neste lado da Terra, sobre este oceano, eu procurava me encharcar para não dar o vexame de trincar meu madeirame causando vazamento. Fui um barco cauteloso e fiel aos meus tripulantes e, sobretudo ao meu dono.

Mas ouvia muito se falar de um lapso de Tempo em cujo bojo se aloja o que chamam de Vida.
Quando singrava alto mar na superfície crispada de picos e vales aquosos, jamais dei atenção aos velhos barcos que diziam que: - os barcos quando ficam velhos e vazando água são abandonados em qualquer praia para ali apodrecerem, sua estrutura será carcomida pelas ondas fortes e salgadas, sua pintura que era sua pele, não mais existirá.
A areia o vai esmerilhando desfazendo o cerne de seu madeirame, animais marinhos farão dele morada, até que um dia será um esqueleto desmantelado espalhado pela praia, e sem nome ou recordação ele será engolido pelas areias e pelo mar. Não há fim mais triste- diziam. E alguns emanavam gotas azuladas que caiam em mar calmo.

Agora, ingressado naquilo que ouvia sem dar crédito. Na solidão e no silêncio cortado pelo ritmado e constante rumor do mar, lavando interminavelmente a imensidão de areia, onde já principiava a afundar seu calado, sentia um pequeno conforto nos breves pousos ora de uma águia do mar, ora de uma gaivota, que julga ter-lhe feito piedosa companhia.

Como não falava a língua dos homens, dos pássaros, nem dos peixes e outros animais marinhos, foi morrendo em silêncio taciturno e no mais doloroso abandono, a despeito do grande significado que teve quando deslizava sobre as águas, transportando tripulação, carregamento de peixes, tralhas de pescadores, e mesmo no período proibitivo de pesca, seu dono o utilizava para passeios com os turistas às ilhas e praias distantes. Sua vida era intensa.

Um barco velho abandonado não foge muito da semelhança da vida humana e de nossos irmãos não humanos, que servem aos donos como bestas de carga, transportes de veículos de tração animal, cães de guarda, bois de carro e muitos deles ou são abandonados à própria sorte ou pior, vendidos para o abate, quando deveriam descansar para morrer; ainda servem de alimento como suas carnes cansadas...

Nós não fugimos muito à regra, muitos “filhos” abandonam seus pais em uma Instituição, que vive da caridade popular.
Certa vez, conversei com uma senhora muito velhinha, que estava totalmente só, isolada em um dia festivo e de visitas. Ela disse-me, que já fazia vinte anos, que se não fora um único neto, já cinquentão, que às vezes aparecia, nenhum representante familiar a vinha visitar. E disse-me ele, certa vez, que seus pais ainda eram vivos.

Tem momentos que olhamos para a vida como o barco abandonado à sua sorte, sem saber em que praia vai ser deixado, se não por filhos, pela falta da presença do Estado, que levou-nos durante toda a vida os encargos sociais, para sermos abandonados nos ermos mais sombrios das praias distantes.

Nossos filhos e parentes, por vezes, podem menos do que nós, e tem uma hora que você olha para o horizonte onde se encontra o céu com o grande oceano e sabe que vai terminar seus dias na solitária praia esbatida pelas fortes ressacas, o peso das areias que o irão sufocar largado à própria sorte, por culpa de uma política descuidada e desumana de saúde. Embora todos os esforços de filhos, genros e netos...

Mas tanto como o barco: parece que não falamos a mesma língua daqueles humanos, nem dos pássaros do céu, nem dos médicos sem meios logísticos também; como uma guerra em que tudo falta.
Oremos aos céus para que nosso processo final não se assemelhe tanto ao nosso barco inspirador desta parábola da vida.

Mauro Martins Santos

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