O CRIME DA JOVEM RUIVA
Mauro Martins Santos
LUZ
Este texto é um retorno luminoso semelhante à telha de vidro
da "Felicidade" de Hermann Hesse quando um inocente menino.
No retorno veloz ao passado, um ser alado sobrevoa o mar de
minha vida, e por percorrer o caminho luminoso deixa sua antítese trevosa e
sombria, levando a perder-me nos meandros das árvores falantes. Pois a solidão
é imensa no oceano do pensamento e os seres mais próximos dos semoventes são as
amigas do reino vegetal. O pensamento mais veloz que a tudo que subsiste, vêm
de confins ignorados a habitar a carne com as dores e feridas, lançadas pelos
carcereiros de minha amada Esperança, pelos carrascos encapuzados, preparados a
levá-la á morte no patíbulo erigido fora das muralhas da razão e de todo
entendimento.
Só não o fizeram ainda à bela jovem feita de sonhos reais e
irreais como a dança das luzes espectrais do sol da meia noite na aurora
boreal, por dúvida de qual forma levarão para sempre a chama vital que vitaliza
as almas. Lá estão o cepo e o machado, o cesto para a cabeça, a calha para o
sangue, lá está a corda exageradamente grossa e nós tão díspares para tão
delicado pescoço - bastaria pequena torção . O amontoado de enorme caieira e o
madeiro no centro para a queima da bruxa dos cabelos rubros: tu Esperança, cujo
crime maior para os inquisidores são teus longos devaneios em silêncio absoluto
à margem do cristalino regato.
Os inquisidores têm dúvidas de qual meio o povo que se
acotovela irá apreciar mais. Afinal a Inquisição precisa ganhar apoiadores,
precisam gostar do que veem - antegozar ao êxtase. Não basta trazer a mulher
nua, não basta ser uma mulher, tem que ser jovem, pele macia, não basta tudo
isso sem que ela seja surpreendentemente linda e encimando ser ruiva de olhos
verdes ou azuis. Afinal os expectadores merecem um espetáculo de primeira
ordem. Há que ser impactante, rufar de tambores, choros e gritos e rogos
femininos.
Uma feira sempre é montada para vender “lembranças” do
"Dia da Queima de Mais Uma Bruxa". Mechas de cabelos vermelhos dentro
de pequenos frascos eram vendidas como água no deserto. Fora das emanações do
fanatismo, sadismo, antegozos, mórbidos prazeres - em domínio da razão - via-se
a empulhação, a tapeação: pelos de animais, cabelos das esposas megeras
tingidos - estas megeras eram as mais obsessivas e tresloucadas para a grande
apoteose: coroada de ódio da beleza do corpo, da juventude, do rosto perfeito,
do desejo de seus maridos, e prazer gozado lentamente ao ver um corpo
queimando, um rosto se derretendo e virando cinzas ao fogaréu...
*
O pensamento não podia se perder ou ganhar asas e acabava por
deitar raízes na chaga da qual se nutria - ao bel prazer - em cor e
domínio: a Inquisição. A chaga que impingiam se alastrava ao
vulgo, respiravam com delicioso prazer o cheiro de carne humana assada, e ao
seu ritmo todos ingressavam no estertor do prazer mórbido.
Não é um dado falseado no momento, mas, pontuados
acontecimento de contornos precisos para se conquistar seguidores, revoltados,
fanáticos e introduzi-los nos currais do interesse da bipolarização do poder,
que lá adiante era um só e único empoderamento, mas com ascensão de um, sobre o
outro secular. Difusos personagens escapam aos exames seguidos de certas
perguntas; rejeitam os nomes gravados na História, e assim ganham mais ênfase
para alastrarem-se até o último limite do corpo e íntimo dos pusilânimes de
sempre.
O SONHO
O momento em que pensava sobre isso, era bombeado e
alimentado por seu subconsciente ativo durante o sono. Era, contudo um arquivo
pálido perdido além de portas e janelas, torres e agulhas apontando para o céu
e horizontes. Talvez muitas coisas se relacionassem com ela: memórias de
um cão que uivava ao longe com fome de carne, sinos tangendo na catedral escura
de linhas góticas, massa feita de olhos de gárgulas, baços, de pessoas de
sorrisos desdentados. Os dedos em garras no breu da noite... Depois tudo desce
como um ser alado e pousa manso em certa manhã de sol.
O sol estava ali e produzindo energia para as forças de seu corpo esbelto e ereto, e sua altivez de mulher imensamente bela, cabelos longos com a cor do cobre puro, marchetado por ciganos romenos. Estava a minutos ou horas, quem sabe anos, menosprezada, destituída da aura das coisas deixadas num canto, como uma fada ou anjo tolhida de suas asas, sempre prontas e confiáveis.
Se aproximássemos de seu quarto o ouvido, como o fazemos com
uma concha acústica ouviríamos dialetos, mas de encantos: vozes que remoem as
tardes em sua longa solidão... Festa em júbilo de retorno à vida, que estava
lançada ao profundo túnel do tempo regresso; vidas perdidas no vórtice de um
revirar da ampulheta; papeis em branco dando lugar a pergaminhos amarelados e
cobertos de iluminuras. Destaque para uma mulher ruiva, alta e bonita, amarrada
ao cadafalso, assistida por uma corte real em primeira fila e um clero, ambos
evanescentes.
O linho grosseiro e áspero foi-lhe arrancado para exibir toda
a sua nudez em que mais se destacava à alvura marmórea de seu corpo, o
vermelho-ruivo dos cabelos. Em sua visão fantástica tinha clara
consciência que o prolator de capuz a escurecer o rosto sentenciava; “aquela
mulher como uma perigosa bruxa - como se via por seus cabelos da cor do fogo do
inferno - costumeiramente de olhos perdidos endemoninhados e balbuciando em voz
baixa o dialeto das bruxas”.
Este pronunciamento - lembrando-se da sentença - era seu ignóbil crime: “estar sempre absorta e perdida em seus pensamentos, montando versos e estrofes, rebuscando rimas e com um estilete carvoejado grafando-as em um pergaminho”... Pensava em seu noivo que fora tomado por um torvelinho forte e veloz, se elevando para um ponto que ela sabia ser o caminho-futuro. Assim ia para as margens do ribeirinho, eivada de emoções na mais cristalina solidão.
FIM
Assim... Você deverá prender os brincos com os quais ele a
presenteara. Ponha uma rosa vermelha nos cabelos que ele sempre toma por
sedução. Rebusque em suas gavetas que ficaram cheias de lembranças.
Cesse seus pensamentos do passado, isto agora nada mais significa além de uma
vivência a mais para sua alma. Ache no fundo de uma das gavetas o Anel
Mágico da Redenção. Ele tem agora um brilho forte, diferente. Olhe
profundamente para a pedra ônix, lá no fundo de sua cor negra verá um ponto de
luz gradativamente aumentando, um rosto surge, um lugar onde reside seu
futuro lá esta ele a te esperar.
E a estação do ano, que estiver vivenciando - será uma eterna
e florida Primavera - junto às janelas e vitrais espalhará seu brilho e aura
com a mesma fidelidade que faz há séculos. E sempre fará...
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